Comentários à Nova Lei de Seguros e Seus Impactos em Sinistros de Responsabilidade Civil
Análise da Lei nº 15.040/2024 e seus impactos nos sinistros de responsabilidade civil, com foco em prazos, obrigações e lacunas legais.

Após anos em trâmite, o então projeto de Lei PL n° 8.034/2010 (apensado ao PL original n° 3.555/2004), que estabeleceu as normas gerais em contratos de seguro privado, após aprovação pela Câmara dos Deputados, foi sancionado sem vetos pelo então presidente da República com a promulgação da Lei n° 15.040/2024 em 09/012/2024.
A nova lei de seguros estabelece um marco para um setor tão importante na economia brasileira, que mesmo durante a pandemia em 2020, apresentou um crescimento de 0,6% em relação ao ano anterior[1], com um lucro de R$ 274,11 bilhões naquele ano.
Em leitura ao texto da lei, verifica-se que esta objetiva ser mais favorável ao segurado, parte hipossuficiente na relação securitária. Porém, visando fomentar esse viés, a lei apresentou algumas lacunas e disposições que parecem não estar de acordo com os seguros de grandes riscos, por exemplo.
Dentre estes pontos, podemos citar inicialmente o artigo 14 da Lei, o qual dispõe que "o segurado deve comunicar à seguradora relevante agravamento do risco, tão logo dele tome conhecimento".
De igual sorte, ao tratar sobre o momento do aviso do sinistro, o artigo 66 da nova Lei dispõe que o segurado ao tomar ciência do sinistro ou da sua iminência de acontecimento, deve "avisar prontamente a seguradora".
Cabe lembrar que o artigo 769 do Código Civil vigente dispõe que "O segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé." Na mesma toada, o artigo 771 dispõe que "Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba, e tomará as providências imediatas para minorar-lhe as consequência."
A expressão "logo que saiba" disposta no atual Código Civil, que sempre gerou discussões homéricas entre segurados e seguradoras, e, ao ser substituída por "tão logo dele tome conhecimento" e "avisar prontamente a seguradora", não trouxe mudança prática ao cenário anterior, pois ambas dependem da interpretação subjetiva sobre o momento exato em que o segurado tomou conhecimento do agravamento do risco e/ou sinistro. Assim, a nova lei manteve a mesma essência do dispositivo anterior, perpetuando as discussões e o espaço para divergências e disputas jurídicas.
Ainda, o artigo 66 ao não dispor sobre um prazo objetivo para o aviso de sinistro, ganhou um "aliado" no artigo 126, II, que trata da prescrição, pois este limitou-se a prever que o prazo prescricional do segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, começa a correr somente "a partir da recusa motivada da seguradora". Ou seja, antes da negativa do sinistro, não há nenhum prazo que o segurado deva cumprir, ficando as seguradoras à mercê de avisos de sinistros extemporâneos, gerando, também, insegurança jurídica e prejuízo quanto à gestão dos seus riscos.
Em adição, o artigo 101 alocado dentro das disposições sobre o seguro de responsabilidade civil, prevê que o segurado deverá dar ciência à seguradora "tão logo seja citado para responder à demanda". Apesar de subjetiva, deixa uma interpretação um pouco mais restritiva quanto ao momento do aviso de sinistro no caso de uma reclamação judicial em face do segurado. Porém, a lei deixa de prever os casos em que o segurado seja demandado extrajudicialmente por terceiros, o que nos faz recair na regra, ou ausência dela, para o acionamento do sinistro mencionada nos parágrafos anteriores.
Visando talvez coibir o aviso tardio do sinistro e a omissão de informações que alterem o risco, o legislador previu sanções, tais como, a perda do direito à garantia ou indenização e o pagamento da diferença do valor do prêmio[2], quando possível, para aqueles que o façam de maneira dolosa ou culposa.
Porém, mais uma vez recai-se sobre uma análise subjetiva, agora relacionada aos critérios para a avaliação do dolo ou da culpa. Dessa forma, as seguradoras acabam ficando à mercê do Judiciário para o reconhecimento da intenção de seus segurados e aplicação das respectivas penalidades, podendo, de ofício, reconhecer apenas a omissão culposa, para a qual não houve a intenção.
Ainda em análise ao texto da lei recém publicada, houve uma importante delimitação ao prazo de regulação do sinistro, conforme disposição do artigo 86, que assim prevê:
Art. 86. A seguradora terá o prazo máximo de 30 (trinta) dias para manifestar-se sobre a cobertura, sob pena de decair do direito de recusá-la, contado da data de apresentação da reclamação ou do aviso de sinistro pelo interessado, acompanhados de todos os elementos necessários à decisão a respeito da existência de cobertura.
O parágrafo 3° do citado artigo dispõe, ainda, que se necessária a solicitação de documentos complementares, o prazo para manifestação sobre a cobertura somente poderá ser suspenso por duas vezes.
Ou seja, pelo artigo 86 e seu parágrafo terceiro, o prazo para análise de cobertura, e tão somente, é de 30 dias. Apesar de o artigo não dispor nada a respeito, é possível imaginar que as seguradoras possam encerrar o sinistro pela falta de documentos ou esclarecimentos necessários para a sua conclusão.
Por sua vez, o artigo 77 dispõe que sempre que possível, a regulação e a liquidação do sinistro, ou seja, apuração de cobertura e pagamento da indenização, devem ser realizados simultaneamente.
Porém, o artigo 87 dispõe que "Reconhecida a cobertura, a seguradora terá o prazo máximo de 30 (trinta) dias para pagar a indenização ou o capital estipulado." A partir da leitura dos artigos 86 e 87 não resta claro se há um único prazo de 30 dias para a regulação e liquidação do sinistro ou se a regulação tem um prazo de 30 dias, seguido por mais 30 dias para a liquidação.
Além das divergências apontadas acima, tais artigos também são polêmicos devido ao exíguo lapso temporal fornecido às seguradoras para apuração de cobertura e liquidação do sinistro. Para sinistros em geral, o prazo será de 30 dias (pendente a confirmação dos 30 + 30). Porém, conforme disposição do parágrafo 5°, a autoridade fiscalizadora poderá fixar um prazo superior, dependendo da complexidade da apuração e tal prazo deverá respeitar o limite máximo de 120 (cento e vinte) dias.
Ora, sabe-se que sinistros de grande complexidade, tais como de garantia que envolvam obras públicas, em que é preciso o levantamento de extensa documentação além de uma apuração precisa de cronograma de obra, bem como, sinistros de D&O que envolvam ações no exterior, como é o caso do rompimento da barragem de Mariana que resultou em uma Class Action nos EUA[3], entre outros, podem demandar bem mais que 120 dias, até mesmo por conta dos respectivos desdobramentos do processo que dirão efetivamente sobre a responsabilidade ou não do(s) envolvido(s).
Assim, a delimitação do prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias não parece acertada. Seria imperioso que a autoridade fiscalizadora ao menos determinasse a suspensão deste prazo devido à necessidade de apuração de responsabilidade pela ação judicial, por exemplo.
Um outro ponto importante trazido pela lei foi prever formalmente pela primeira vez a participação do regulador para prestação de serviço no lugar da seguradora, conforme parágrafo único do artigo 76[4]. Trata-se de um grande avanço pois, não raro, os segurados negavam-se a entregar os documentos ao regulador por desconhecer totalmente sua figura e ligação com a seguradora, o que agora, é suprido por força de lei.
Com vistas a esta "nova figura", os artigos 78[5] e 80[6], trazem as obrigações do regulador e do liquidante, tais como, o dever de informar à seguradora as quantias apuradas para pagamento da indenização ao segurado ou beneficiário, o dever de exercer sua atividade com probidade e celeridade e informar a todos as partes o conteúdo das apurações. É prevista, também no parágrafo único do artigo 78, a possibilidade de responsabilização solidária do regulador e liquidante pelos danos decorrentes da demora.
Concluída a análise de cobertura pela seguradora, o relatório de regulação e liquidação poderá ser entregue às partes, de acordo com o artigo 82[7], o que não encontrava qualquer respaldo legal até então. Em caso de negativa, o segurado recebia uma carta suscita por parte da seguradora, com breves motivos a respeito de sua análise. Pela nova lei, espera-se que seja dado maior respaldo ao segurado no que tange à regulação realizada, conforme também previsão do artigo 83[8], que prevê a disponibilização aos interessados dos documentos produzidos ou obtidos durante a regulação.
Diante da análise exemplificativa realizada neste artigo, é inegável dizer que a nova lei trouxe avanços importantes para o setor de seguros. No entanto, considerando os anos em que o projeto esteve em trâmite perante a casa legislativa, esperava-se um texto mais robusto e alinhado com a complexidade dos diferentes tipos de seguros e com as nuances do processo de regulação de sinistros. Infelizmente, algumas lacunas e ambiguidades persistem, o que tende a perpetuar disputas judiciais para a interpretação e aplicação da norma.
Espera-se que durante, a vacatio legis[9], em conformidade com o artigo 128[10], a SUSEP e demais órgãos competentes promovam ajustes e regulamentações complementares para esclarecer os aspectos mais controversos da lei. A mitigação dessas incertezas será fundamental para garantir um equilíbrio justo entre seguradoras e segurados, assegurando maior previsibilidade e eficiência ao mercado de seguros no Brasil.
Referências
[1] https://www.gov.br/susep/pt-br/arquivos/arquivos-dados-estatisticos/sinteses-mensais/2020/sintese-12-2020.pdf
[2] Art. 14. O segurado deve comunicar à seguradora relevante agravamento do risco tão logo dele tome conhecimento.
(...)
§ 3º O segurado que dolosamente descumprir o dever previsto no caput deste artigo perde a garantia, sem prejuízo da dívida de prêmio e da obrigação de ressarcir as despesas incorridas pela seguradora.
§ 4º O segurado que culposamente descumprir o dever previsto no caput deste artigo fica obrigado a pagar a diferença de prêmio apurada ou, se a garantia for tecnicamente impossível ou o fato corresponder a tipo de risco que não seja normalmente subscrito pela seguradora, não fará jus à garantia.
Art. 44. O potencial segurado ou estipulante é obrigado a fornecer as informações necessárias à aceitação da proposta e à fixação da taxa para cálculo do valor do prêmio, de acordo com o questionário que lhe submeta a seguradora.
§ 1º O descumprimento doloso do dever de informar previsto no caput deste artigo importará em perda da garantia, sem prejuízo da dívida de prêmio e da obrigação de ressarcir as despesas efetuadas pela seguradora.
§ 2º O descumprimento culposo do dever de informar previsto no caput deste artigo implicará a redução da garantia proporcionalmente à diferença entre o prêmio pago e o que seria devido caso prestadas as informações posteriormente reveladas.
Art. 66. Ao tomar ciência do sinistro ou da iminência de seu acontecimento, com o objetivo de evitar prejuízos à seguradora, o segurado é obrigado a:
(...)
§ 1º O descumprimento doloso dos deveres previstos neste artigo implica a perda do direito à indenização ou ao capital pactuado, sem prejuízo da dívida de prêmio e da obrigação de ressarcir as despesas efetuadas pela seguradora.
§ 2º O descumprimento culposo dos deveres previstos neste artigo implica a perda do direito à indenização do valor equivalente aos danos decorrentes da omissão.
[3] https://www.conjur.com.br/2020-fev-15/americanos-fazem-acordo-valepara-encerrar-acao-mariana/
[4] Art. 76. Cabem exclusivamente à seguradora a regulação e a liquidação do sinistro.
Parágrafo único. A seguradora poderá contratar regulador e liquidante de sinistro para desenvolverem a prestação dos serviços em seu lugar, sempre reservando para si a decisão sobre a cobertura do fato comunicado pelo interessado e o valor devido ao segurado.
[5] Art. 78. O regulador e o liquidante do sinistro devem prontamente informar à seguradora as quantias apuradas a fim de que possam ser efetuados os pagamentos devidos ao segurado ou ao beneficiário.
Parágrafo único. O descumprimento da obrigação prevista no caput deste artigo acarretará a responsabilidade solidária do regulador e do liquidante pelos danos decorrentes da demora.
[6] Art. 80. Cumpre ao regulador e ao liquidante de sinistro:
I - exercer suas atividades com probidade e celeridade;
II - informar os interessados de todo o conteúdo de suas apurações, quando solicitado, respeitada a exceção prevista no parágrafo único do art. 83 desta Lei;
III - empregar peritos especializados, sempre que necessário.
[7] Art. 82. O relatório de regulação e liquidação do sinistro é documento comum às partes.
[8] Art. 83. Negada a cobertura, no todo ou em parte, a seguradora deverá entregar ao interessado os documentos produzidos ou obtidos durante a regulação e a liquidação do sinistro que fundamentem sua decisão.
[9] Intervalo de tempo entre a publicação de uma lei e o seu início de vigência.
[10] Art. 128. A autoridade fiscalizadora poderá expedir atos normativos que não contrariem esta Lei, atuando para a proteção dos interesses dos segurados e de seus beneficiários.